Washington, D.C.: o 51º estado americano?
Em pleno 2021, os mais de 700.000 residentes da capital americana não possuem representação alguma no Congresso Nacional. O partido democrata está tentando mudar isso de uma vez por todas.
Uma placa de carro de Washington, D.C., o distrito federal americano. (Fonte: Wikimedia commons)
“Nenhuma tributação sem representação.” Este foi o slogan político por trás da Revolução Americana no final do século 18, expressando uma das principais queixas que serviu como motivação para os colonos americanos se rebelarem contra a metrópole inglesa e formarem uma nova nação baseada nos ideais da democracia.
200 anos depois, o mesmo grito de guerra (“Nenhuma tributação sem representação”) pode ser encontrado nas placas de carro registradas em Washington, Distrito de Colúmbia, o distrito federal americano mais conhecido pela sigla D.C. que abriga mais de 700.000 habitantes. No entanto, ao contrário dos 50 estados americanos, os residentes de D.C. não possuem representação alguma no Congresso Nacional, além de uma deputada especial sem poder de voto.
Mas isso poderá mudar em breve. Em abril, a Câmara dos Representantes votou para converter D.C. em um novo estado com representação total no Congresso, o que quase certamente adicionaria duas cadeiras extras aos democratas no Senado e uma na Câmara. O presidente Joe Biden já declarou seu apoio à proposta, que ainda não foi ouvida pelo Senado—mas agora que os democratas controlam as duas câmaras do Congresso e a Casa Branca pela primeira vez em sete anos, o sonho da criação de um estado em D.C. está mais perto do que nunca.
Qual é o status atual de D.C.?
Washington, D.C. não possui os mesmos privilégios que os 50 estados americanos, que têm representação completa em ambas as câmaras do Congresso, cada um com dois senadores e um número de deputados federais variável de acordo com a população. Em comparação, desde 1985, o distrito federal brasileiro é considerado uma das 27 unidades federativas do Brasil e tem os mesmos direitos que todos os outros estados, com três senadores e oito deputados federais.
Nos Estados Unidos, isso ainda não é o caso por razões históricas e políticas. Por um breve período após a criação de Washington, D.C. como capital americana em 1790, os residentes tinham autorização para votar como residentes de Maryland ou Virgínia, os dois estados que fazem fronteira com o distrito federal. Mas esses direitos terminaram depois que o Congresso aprovou a Lei Orgânica do Distrito de Colúmbia de 1801. A lei privou os residentes de D.C. de seus direitos de voto em todas as eleições federais, incluindo a presidencial, e deu ao Congresso o controle absoluto sobre o distrito, o que é o caso até hoje.
Por que transformar D.C. em um estado?
A luta para transformar o distrito federal americano em um estado vem muito antes do mandato do presidente Biden. Antes do voto de abril, a proposta havia sido apresentada duas vezes na Câmara dos Representantes: uma em 1993, sem obter a maioria dos votos, e outra no ano passado, quando os democratas votaram esmagadoramente a favor da transformação de D.C. em um estado (o projeto não foi ouvido pelo Senado com controle republicano, no entanto).
Antes desses votos, uma série de medidas foram tomadas para garantir aos residentes do distrito federal os mesmos direitos que o restante dos cidadãos americanos. Uma dessas medidas foi a 23ª emenda da Constituição americana em 1961, que concedeu aos residentes de D.C. o direito de votar nas eleições presidenciais. Outra medida recente foi em 1970, quando o Congresso ofereceu aos residentes do distrito um delegado sem direito a voto para expressar os interesses da população de D.C. na Câmara dos Representantes. Embora o delegado de D.C. tenha permissão para apresentar projetos de lei, ele não possui um voto oficial na Câmara, eliminando substancialmente seu poder.
Os defensores de D.C. como estado argumentam que os 700.000 residentes do distrito, apesar de pagarem impostos federais mais altos em média do que todos os 50 estados americanos, não recebem um tratamento justo do governo federal. Isso se tornou evidente durante a fase inicial da pandemia do Coronavírus, quando o governo Trump aprovou o primeiro pacote de alívio econômico. Enquanto cada estado recebeu pelo menos 1 bilhão de dólares em fundos de emergência (incluindo Wyoming e Vermont, estados com menos habitantes do que D.C.), D.C. foi tratado como um território em vez de estado e recebeu apenas 500 milhões de dólares, menos da metade que o restante do país.
Como o Congresso Nacional é oficialmente responsável por todos os assuntos internos de D.C., os políticos locais afirmam que o distrito é frequentemente usado como uma marionete para avançar uma agenda conservadora quando os republicanos estão no poder. Existem exemplos desse fenômeno em várias ocasiões.
Durante o auge da epidemia de HIV nos Estados Unidos, na década de 1980, o conselho municipal de D.C. iniciou um programa de troca de seringas para reduzir a propagação de HIV entre usuários de drogas intravenosas. O Congresso, controlado pelos republicanos, proibiu a iniciativa com o objetivo de sinalizar uma política de “tolerância zero” aos usuários de drogas, que por sua vez, criou barreiras ao combate ao HIV dentro do distrito e contribuiu para a disseminação da doença.
Mais recentemente, durante o mandato de Donald Trump, o Congresso vetou vários projetos de lei apresentados pelo conselho municipal de D.C., incluindo a legalização e a regulamentação da maconha, o uso de fundos locais para atendimento ao aborto, assim como definindo todo o orçamento da cidade. Essas são questões que a maioria da cidade, que é predominantemente liberal, apoia, mas não é capaz de escolher por causa do controle do Congresso.
Outros descrevem a luta pela criação de um estado em D.C. como uma questão de justiça racial. Com mais de 46% da população do distrito se identificando como afro-descendente, D.C. seria, de longe, o estado com a maior proporção de negros em todo o país. Ao considerar a composição demográfica do distrito, os negros também são desproporcionalmente afetados pela falta de controle sobre sua cidade.
O grupo de interesse “51 for 51” (abreviação de 51 senadores pelo 51º estado) diz isso de forma crua: em um anúncio televisionado, um porta-voz argumenta que “DC tem uma população predominantemente não-branca, então o fato de não termos representação no Congresso não é por acaso”.
Que obstáculos enfrenta o possível estado de D.C.?
Embora a ideia de transformar D.C. em um estado desfrute do imenso apoio de seus 700.000 residentes, há um obstáculo principal para esse sonho se tornar uma realidade: a política.
Na eleição de 2020, 92% dos residentes do distrito votaram em Joe Biden e o conselho municipal de D.C. é composto por 11 democratas e 2 independentes, sem nenhum republicano. Os republicanos estão bem cientes de que isso significa que, se convertido em estado, D.C. quase certamente acrescentaria duas cadeiras no Senado ao Partido Democrata, ampliando sua atual maioria de 50 cadeiras mais o voto de minerva de Kamala Harris, para 52 cadeiras. Enquanto líder do Senado, o republicano Mitch McConnell chegou a dizer que qualquer tentativa de transformar D.C. em um estado seria “puro socialismo''.
A principal arma que os republicanos possuem em seu arsenal para impedir a criação de um estado em D.C. é o filibuster, uma regra esotérica do Senado ainda em uso hoje que impede que qualquer projeto de lei seja votado sem uma maioria absoluta de três quintos (em vez de uma maioria simples de 51%). Em outras palavras, sem o apoio de pelo menos 10 republicanos para transformar a capital americana em um estado, esse projeto não sairá do papel.
No entanto, os democratas também defendem a eliminação total do filibuster, o que poderia ser feito pelo líder da maioria no Senado (atualmente Chuck Schumer, um democrata), invocando o que é conhecido como a "opção nuclear" e forçando uma mudança nas regras do Senado através de uma maioria simples (o que os democratas já possuem). Para aprovar a conversão de D.C. em estado, essa tática controversa seria necessária.
Um obstáculo ainda maior que essa proposta enfrenta é a aceitação dentro do próprio partido democrata. O senador democrata Joe Manchin, da Virgínia Ocidental, declarou recentemente em uma entrevista que não apoia a transformação de DC em um estado por meio de votação no Congresso. Em vez disso, diz Manchin, essa proposta deveria ser aprovada “pelo povo” por meio de uma emenda constitucional, que exigiria dois terços de ambas as câmaras do Congresso, assim como três quartos de todas as legislaturas estaduais. Essa hipótese é muito improvável, já que legislaturas republicanas controlam 38 estados e são contra qualquer ferramenta que poderia dar mais poder ao seu partido adversário.
Ao examinar outras admissões de estados, no entanto—incluindo as mais recentes, o Havaí e o Alasca, ambos em 1959—nenhuma exigiu emendas constitucionais e todas foram aprovadas pelo Congresso. Se o senador Manchin escolher ignorar esse precedente, os democratas não terão nem mesmo a maioria simples necessária para mudar as regras do filibuster—uma reforma que o senador Manchin também declarou ser contra.
Mesmo que o projeto de lei não seja aprovado no Senado, a luta pela representatividade de D.C. atingiu um marco histórico: chegar a ser ouvido pelo Senado. Isso já havia sido tentado antes, mas nunca se concretizou até agora. O que antes era uma questão local com pouca visibilidade fora do distrito federal, agora se tornou uma das questões mais discutidas e prioritárias do partido democrata de hoje em todo o país.
Com a democracia americana em desordem desde o final da presidência de Trump (vale relembrar que o ex-presidente incentivou uma insurreição no Congresso para tentar invalidar a eleição vencida pelo Biden), o mandato de Biden se iniciou com o fortalecimento da democracia como prioridade. Esse momento não poderia ser melhor para dar uma voz (e representação parlamentar) aos habitantes da capital americana.