A estranha e complexa relação entre os Estados Unidos e as armas de fogo: será que dessa vez alguma coisa muda?

Foto: Scientific American

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Enquanto os Estados Unidos lidam com mais uma série de tiroteios em massa, o debate sobre o controle de armas voltou com toda força. Com os democratas no controle da Casa Branca e do Congresso, o país pode em breve ver uma grande reforma na legislação sobre a posse de armas. Mas, como chegamos ao ponto no qual nos encontramos hoje?

Em março deste ano, os Estados Unidos passaram por duas tragédias seguidas: um tiroteio em massa no estado da Geórgia, com oito vítimas, seguido por outro no Colorado, com dez. Embora essas tragédias tenham aparecido em manchetes pelo mundo todo, elas infelizmente não foram surpresa para a maioria dos americanos. Os dois tiroteios reafirmam um padrão observado pelo povo americano inúmeras vezes: indignação com as leis armamentistas frouxas, pedidos de controle de armas por grande parte da população, políticos dizendo que nada pode ser feito e conformidade ao status quo.

Os tiroteios em massa se tornaram rotina nos Estados Unidos, onde as taxas de posse de armas são de longe as mais altas do mundo, com 120 armas para cada 100 residentes. Em comparação, no Brasil, o número é de 8.

Apesar de receberem mais atenção, os tiroteios em massa, por incrível que pareça, não são a principal causa de alarme: em 2020, os Estados Unidos registraram mais de 14.000 homicídios e 23.000 suicídios por armas de fogo, ultrapassando taxas observadas em outras nações desenvolvidas. Como disse o presidente Joe Biden recentemente, a crise de violência relacionada às armas de fogo nos Estados Unidos é uma “vergonha internacional.”

Mas apesar do amplo apoio público para mudanças na legislação armamentista, toda vez que um parlamentar apresenta um projeto de lei, a proposta é barrada no Senado. 

No entanto, agora, algo é diferente. Pela primeira vez em sete anos, os democratas, que há tempos fazem campanha para reformar as leis armamentistas dos Estados Unidos, controlam a Casa Branca e as duas câmaras do Congresso Nacional. Ademais, a ordem executiva do presidente Biden sobre o controle de armas no início de abril sinaliza que uma mudança significativa poderá ocorrer em breve.

Enquanto os Estados Unidos navegam pelo cenário político pós-Trump e o controle de armas está novamente na mesa, a questão ainda intriga muitos ao redor do mundo: por que, afinal, o país mais poderoso do mundo ainda não encontrou uma solução para sua epidemia de armas de fogo?

A resposta está longe de ser simples e pode começar a ser compreendida olhando para a história americana, seu sistema político e suas tradições culturais.

A Segunda Emenda da Constituição

Junto com o México e a Guatemala, os Estados Unidos são apenas um dos três países onde portar uma arma de fogo é um direito civil reconhecido pela constituição.

A segunda emenda da Constituição americana afirma claramente o direito de posse de armas de fogo: “Uma milícia bem regulamentada, sendo necessária à segurança de um Estado livre, o direito do povo de possuir e portar armas, não deve ser infringida.”

Embora tenha sido discutido ao longo da história se o termo “milícia” se refere à forças militares estaduais para proteção contra o governo federal ou membros individuais da sociedade, ao longo do tempo, há uma maior aceitação para o segundo significado devido a decisões judiciais federais, disposições nas constituições estaduais permitindo o livre acesso a armas civis, assim como normatizações culturais.

Vários estados e municípios já tentaram restringir a posse de armas e limitar o alcance da Segunda Emenda. Em 2008, no entanto, o caso da Suprema Corte District of Columbia v. Heller invalidou a proibição do distrito federal americano sobre a venda de armas para uso pessoal e a exigência de donos de armas a mantê-las  desmontadas a todo momento. Essa decisão afirmou a interpretação da Segunda Emenda como o direito irrestrito do cidadão comum a portar armas de fogo, e não como o direito de estados formarem milícias. Desde essa decisão, estados têm tido menos opções à sua disposição para limitar o porte de armas. 

Enquanto outras nações, como o Brasil—com o Estatuto do Desarmamento em 2003—podem aprovar mais facilmente medidas para coibir o porte de armas, a Segunda Emenda tem servido como uma das principais barreiras à imposição de limitações substanciais ao armamento nos Estados Unidos.

A Cultura Armamentista dos EUA

Outra razão pela qual restringir o porte de armas nos Estados Unidos é tão difícil é o significado cultural excepcionalmente forte que as armas têm na sociedade americana, o que se reflete em uma grande influência na esfera da política.

Para muitos americanos (principalmente brancos, conservadores e moradores de zonas rurais), o debate sobre o controle de armas é mais profundo do que simplesmente exigir uma verificação de antecedentes na hora de comprar uma arma, como muitos democratas têm proposto ao longo dos anos; esse debate é uma questão que esbarra no que esses segmentos sociais consideram uma de suas liberdades civis mais fundamentais e uma ameaça ao seu modo de vida. A hipótese de alguém tirar suas armas inspira raiva, medo e, potencialmente, revolta pública. Um estudo recente do Pew Research Center revelou que, entre os proprietários de armas nos Estados Unidos, 74% afirmam que possuir uma arma de fogo é essencial para sua liberdade pessoal.

Por essa razão, o contencioso debate em torno do controle de armas está intrinsecamente ligado à Segunda Emenda, que para muitos americanos é vangloriado. Tornou-se uma ação clássica para os políticos republicanos a favor das armas alegarem que os democratas “querem revogar a segunda emenda e tirar suas armas” durante campanhas eleitorais, como na campanha de Donald Trump, e reafirmado repetidamente durante sua presidência. Para sinalizar apoio aos direitos armamentistas, candidatos costumam se rotular como “Pro-2A” (abreviação de pró-Segunda Emenda).

Dois momentos em que a venda de armas dispara são os dias posteriores a um tiroteio de grande proporção e os meses de corrida eleitoral, quando os donos de armas temem a chegada ao poder de um governo que possa tentar restringir o acesso a armas de fogo.

Indústria e lobby de armas de fogo

Outro fator importante no debate americano sobre armas é a própria indústria armamentista e o lobby altamente influente que atua em sua defesa.

No final do século XIX, os Estados Unidos já eram o principal fabricante de armas do mundo, com poucos regulamentos para restringir os cidadãos a obter armas mortais num cenário marcado pelo crescimento da demanda doméstica.

Mas no final do século XX, o número de tiroteios em massa nos Estados Unidos explodiu, trazendo uma discussão profunda sobre o lugar das armas de fogo na vida pública americana.

A fim de evitar prejuízos em seu negócio lucrativo, a indústria de armas de fogo começou a investir fortemente em atividades lobistas com o governo federal para impedir a aprovação de leis que limitassem o acesso de civis a armas de fogo. (Ao contrário do Brasil, os políticos americanos não recebem dinheiro por meio de fundos partidários e contam apenas com doações privadas de pessoas físicas e jurídicas para financiar suas campanhas eleitorais).

Um dos maiores culpados pela inação do Congresso em relação ao controle de armas é a Associação Nacional de Rifles (mais conhecida pela sigla NRA). Desde 1998, a NRA já gastou mais de US$45 milhões em lobismo, incluindo doações anuais para senadores e deputados republicanos, garantindo que eles votem para manter legislação benéfica para a indústria de armas.

Em 2012, ano do infame massacre de Sandy Hook, no qual 20 crianças foram mortas dentro de uma escola, os candidatos republicanos ao congresso receberam US$886,000 em doações da NRA. Apesar do clamor público em todo o país por uma revisão da legislação sobre armas, nenhuma ação foi tomada pelo Senado, que na época era controlado pelos republicanos.

A NRA causa indignação em muitos dos que se opõem ao acesso irrestrito de armas nos Estados Unidos. Após um tiroteio em massa em Gilroy, Califórnia, em 2019, a cidade de San Francisco chegou a designar a NRA como uma organização terrorista, alegando que “ninguém fez mais para atiçar as chamas da violência armada do que a NRA.”

Inação onipresente dos EUA contra leis armamentistas efetivas 

Em outras nações desenvolvidas, os tiroteios em massa tendem a gerar ações imediatas do governo para limitar o acesso dos cidadãos a armas de fogo perigosas: esse foi o caso na Austrália, que implementou uma proibição de armas de fogo e um programa obrigatório de recompra de armas após um tiroteio em 1996 que provocou 35 mortes. A Austrália nunca viveu um tiroteio em massa desde então.

O Reino Unido também impôs limitações à compra de armas de fogo após o Massacre de Dunblane em 1996, quando um atirador matou 16 crianças. Após a mudança nas leis armamentistas, o Reino Unido nunca mais viu um tiroteio em massa de proporções semelhantes.

Já nos Estados Unidos, desde o infame massacre do colégio Columbine, em 1999, com 15 mortos, nenhuma ação foi tomada pelo congresso americano. Desde então, mais de 2,300 pessoas foram vítimas de tiroteios em massa em solo americano. Se olharmos para mortes em decorrência de armas de fogo em geral, o número é mais assustador ainda: entre 1999 e 2013, mais de 450,000 vidas foram tomadas por armas de fogo nos Estados Unidos, mais do que todas as mortes de COVID-19 no Brasil.

No entanto, já houve iniciativas para tentar flexibilizar o direito ao porte de armas nos Estados Unidos. Em 1994, por exemplo, o congresso (controlado pelos democratas) congelou a venda de armas de fogo semiautomáticas por 10 anos para tentar reduzir mortes. Entretanto, essa lei não foi renovada depois de expirar, em 2004.

Além disso, vários estados têm leis que proíbem o porte aberto de armas e exigem uma verificação de antecedentes na hora da compra assim como um registro oficial de armas recém-adquiridas. Mas, no geral, comprar uma arma nos Estados Unidos em 2021 é tão fácil quanto comprar um copo de Mate Leão no Brasil.

No entanto, apesar da difusão da cultura das armas em grande segmento da população americana, pesquisas  têm  indicado  consistentemente  ao  longo  dos  últimos  anos  que  a  maioria  dos americanos de fato apoiam a consolidação do que veio a ser conhecido como leis armamentistas de “senso comum”: a expansão de verificação de antecedentes, avaliações psiquiátricas antes de obter uma arma, um período de espera entre a compra e o recebimento de armas, assim como outras medidas que poderiam evitar que as armas caíssem nas mãos de pessoas erradas.

Isso se tornou evidente após o tiroteio em massa de Marjorie Stoneman Douglas High School, em 2018, no qual 17 adolescentes foram mortos. Sobreviventes do tiroteio organizaram o movimento Marcha por Nossas Vidas, levando mais de um milhão de manifestantes às ruas de cidades americanas para exigir mudanças na legislação de controle de armas, assim marcando um novo capítulo neste debate. De acordo com o Pew Research Center, de 2017 a 2019, o número de americanos a favor de leis armamentistas mais rígidas aumentaram de 52% para 60%, indicando que o país está pronto para uma mudança.

E agora?

Durante sua presidência, Donald Trump se beneficiou de um congresso com maioria Republicana para avançar uma agenda conservadora, que nos Estados Unidos abrange direitos armamentistas. Trump também contou com amplo apoio do NRA, que gastou mais de US$100 milhões para ajudar a elegê-lo em 2016.

Mas durante a presidência de Trump, os Estados Unidos também testemunharam quatro dos dez tiroteios em massa mais mortíferos de sua história: o de Las Vegas em 2017, com 60 vítimas; o de Sutherland Springs em 2017, com 26; o de El Paso em 2019, com 22; e o do colégio Marjorie Stoneman Douglas em 2018, com 17.

Em vez de promover leis armamentistas de senso comum, dentre as sugestões de Trump para evitar mais mortes em massa: armar professores em salas de aula para proteger alunos. “Se você tiver um professor que saiba usar uma arma, ele pode acabar com o ataque rapidamente,” disse o então presidente a um grupo de famílias de vítimas de tiroteios em escolas.

Diante de tanta tragédia e inércia, milhões de americanos tomaram ação para exigir mudanças, tanto nas ruas quanto nas urnas: a eleição de Biden em 2020, assim como a tomada do Senado pelos democratas reflete a vontade do povo para mudar políticas fundamentais nos Estados Unidos, dentre elas as leis armamentistas.

Em abril, o presidente Biden assinou uma ordem executiva direcionando o Departamento de Justiça à propor leis que ajudariam a conter a proliferação de armas: regulamento de “armas-fantasmas” (fabricadas em impressoras 3D, sem código serial); apoio à leis de “bandeira-vermelha,” que permitiriam tribunais a barrarem o armamento de indivíduos com histórico de violência e potencial de perigo; e iniciar investimentos de US$5 bilhões em programas de intervenção comunitária para coibir a violência armada.

É improvável que a cultura armamentista dos Estados Unidos mude no futuro próximo e a Segunda Emenda impõe barreiras em leis rígidas contra o armamento em massa, mas o governo Biden está trilhando na direção correta com suas recentes ações executivas. No entanto, quem realmente tem o poder de implementar leis duradouras e efetivas é o Senado.  

Com eleições parlamentares em menos de dois anos, os democratas ainda têm tempo de implementar políticas que poderiam reduzir mortes desnecessárias sem infringir a tão controversa Segunda Emenda da Constituição.

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