Biden venceu a eleição. Seu próximo desafio: enfrentar o partido republicano durante seu mandato.
Presidente americano Joe Biden
Foto: AFP
Um mês após o fim da turbulenta eleição americana, grande parte dos membros do partido republicano não reconheceu a derrota de Donald Trump para Joe Biden. Em tempos de extrema polarização, tal postura demonstra o que se deve esperar dos próximos quatro anos em Washington.
2020 foi um ano atípico em todos os sentidos, e a eleição presidencial americana não foi exceção à regra.
Em razão das medidas de distanciamento social impostas pela pandemia do Coronavírus, um número recorde de votos foi enviado pelo correio, o que atrasou o resultado das eleições por alguns dias (apesar de parecer uma eternidade para o resto do mundo). No dia 7 de novembro, Joe Biden passou a liderar na Pensilvânia e em alguns outros estados importantes, empurrando-o para além dos 270 votos necessários para ganhar o infâme Colégio Eleitoral.
Apesar de ter conquistado a Casa Branca e privar Trump de mais um mandato, tempos difíceis estão por vir para Biden e todo os Estados Unidos – a pandemia chegou à sua pior fase, a economia continua devastada devido aos lockdowns, e o Congresso Nacional está num impasse enquanto a população luta para sobreviver.
Mas talvez a questão mais preocupante seja a vulnerabilidade da democracia americana nesses tempos de crise. Parafraseando o presidente Lincoln, a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo. Entretanto, as afrontas de Trump e o partido republicado caminham para o lado oposto, fomentando a polarização, e é isso que vai pôr a presidência de Biden à prova.
Diante da ausência de uma estratégia política para vencer a eleição, Trump abandonou todas as normas e tradições democráticas das quais os Estados Unidos tanto se orgulha. Pressionou o Departamento de Justiça a investigar o Biden, e atacou diretamente tribunais eleitorais de estados que se recusaram a colaborar para mudar o resultado dos votos.
Além de se recusar a admitir sua perda para o Biden, Trump passou o último mês enfraquecendo a fé da população no sistema eleitoral, alegando que a eleição foi “fraudada” e entrando com ações judiciais frívolas para tentar reverter os resultados dos estados. Após a eleição, as principais emissoras do país como ABC, CBS e NBC chegaram a interromper seu discurso, repleto de mentiras e conspirações – um discurso que se assemelha cada vez mais às falas e práticas de ditadores como Maduro.
As acusações de Trump de fraude eleitoral são sem fundamento, mas ele consegue agir dessa forma antidemocrática em grande parte graças à lealdade de seus colegas republicanos que aplaudem seu comportamento a qualquer custo. Em uma pesquisa feita pelo jornal The Washington Post, apenas 27 dos 249 republicanos no Congresso Nacional reconheceram até hoje a vitória do Biden na eleição.
Daqueles que não reconhecem, a tática principal é desviar do assunto. Quando questionado a respeito da transição presidencial, Kevin McCarthy, o líder dos republicanos na Câmara dos Deputados, disse que vai “esperar para ver quem será o empossado em janeiro.”
Caso não tenha ficado claro até agora, o Biden vai ser empossado, porque foi o Biden que venceu a eleição. O comando que o Trump conseguiu impor sobre o partido republicano chega ao ponto de fazer seus membros negarem a realidade que está diante deles, só para agradar o presidente.
Mas os republicanos estão bem cientes de que alegar que o Trump venceu a eleição sem ter vencido, é um caminho sem saída. A Suprema Corte negou as tentativas da equipe legal de Trump de anular os votos em vários estados, a decisão mais recente sendo na Pensilvânia, um estado que teria sido essencial para o mesmo ganhar a eleição.
Estados-chave, como Wisconsin, Michigan e Geórgia, já certificaram seus resultados, e os membros do Colégio Eleitoral vão votar no dia 14 de dezembro, tornando a vitória de Biden oficial.
Agora que as opções que o Trump possuía para tentar reverter o resultado da eleição presidencial se esgotaram, todos estão de olho no senado.
Muito do que Joe Biden e Kamala Harris serão capazes de realizar ao longo de seu mandato dependerá de qual partido terá controle do senado, que está atualmente dividido entre 50 republicanos e 48 democratas, com apenas duas cadeiras em aberto (ambas do estado da Geórgia) a serem decididas em uma eleição de segundo turno no dia 5 de janeiro.
Se os adversários democratas conseguirem derrubar os senadores republicanos da Geórgia, Biden e Harris vão conseguir aprovar leis e reformas ambiciosas, embora por uma margem estreita que quase certamente sempre dependerá do voto de desempate da Sra. Harris – de acordo com a constituição americana, o vice-presidente também atua como presidente do senado e pode mandar um voto a mais quando ocorrem empates.
Por outro lado, se pelo menos um senador republicano for reeleito na Geórgia, os democratas não conseguirão a maioria no senado. Nesse cenário, as chances de Biden de causar um impacto duradouro durante sua presidência diminuirão drasticamente, pois ele dependeria apenas de ordens executivas, que são mais vulneráveis a serem derrubadas pela Suprema Corte do que legislação aprovada pelo Congresso.
Essas preocupações não são à toa: sem uma maioria no senado, Biden também será impedido de fazer nomeações judiciais para tribunais federais, uma das ferramentas mais poderosas que um presidente tem à sua disposição durante seu mandato.
Foi exatamente isso que os republicanos fizeram com Obama quando assumiram o controle do senado em 2014. Liderados pelo senador Mitch McConnell, do estado de Kentucky, os republicanos bloquearam todos os juízes indicados por Obama (incluindo um para a Suprema Corte) durante os últimos dois anos de seu mandato. Como resultado, o Trump iniciou seu cargo com uma vantagem e foi capaz de nomear mais de 200 juízes para a bancada federal, incluindo três para a Suprema Corte – todos com um viés ideológico conservador, o que coloca avanços como o direito de aborto em risco, que foi decidido num caso da Suprema Corte.
A nomeação recente de Amy Coney Barrett (ACB) para a Suprema Corte pelo Trump é representativa das jogadas que os republicanos vêm elaborando com sua vantagem no senado.
Essa nomeação foi uma contradição direta à lógica do partido republicano, quando bloquearam a indicação de um nomeado de Obama para a Suprema Corte com o argumento de que não se deveria nomear um cargo tão importante “em um ano de eleição.” (Em comparação, Obama indicou Merrick Garland em março de 2016, sete meses antes da eleição – a ACB foi indicada por Trump e confirmada pelo senado uma semana antes da eleição deste ano).
Por isso, se os democratas conseguirem obter uma maioria no senado, Biden deveria aproveitar a oportunidade para revidar todo o jogo feito pelos republicanos nos últimos seis anos, desde que assumiram o controle do senado. Fala-se até em acrescentar cadeiras à Suprema Corte (o que é permitido pela constituição) para manter o equilíbrio ideológico do tribunal após a última nomeação de Trump, mas até agora, Biden se manteve afastado dessa proposta para não gerar polêmica.
De todo modo, há um sentimento crescente no país de que os republicanos receberam uma vantagem injusta por muito tempo e agora é o momento para os democratas liderarem a agenda política. Mas muito do que pode ser alcançado por Biden e Harris depende, de fato, do controle do senado.
A pandemia do Coronavírus encerrou esse experimento chamado Donald Trump de forma amarga. Sua resposta indolente e sua recusa de seguir diretrizes científicas custou uma quantidade enorme de mortes evitáveis, e está projetado que pelo menos 330.000 pessoas vão morrer de COVID-19 até o final do ano, o que será a principal causa de morte nos Estados Unidos em 2020. Mais de 80 milhões de pessoas votaram para o Sr. Biden, o maior número de votos recebidos por qualquer presidente dos Estados Unidos na história, refletindo a frustração do povo com a liderança de Trump.
Biden e Harris vão herdar uma nação mais empobrecida, racialmente dividida e politicamente polarizada do que há quatro anos, em grande parte devido à retórica divisiva empregada por Trump desde que ele entrou no poder. Em um mundo pós-COVID, o foco principal da nova administração presidencial precisa ser a recuperação econômica, a fim de reduzir a taxa de desemprego e promover o bem estar social.
Tendo em mente o histórico obstrucionista do partido republicano nos últimos anos, muitos temem que Biden não vai conseguir trabalhar com o senado nem mesmo para passar pacotes de estímulo para ajudar as pessoas a se recuperarem de uma das piores crises em mais de um século. Muito do que pode ser feito depende do resultado das duas eleições da Geórgia em janeiro.
Mas de qualquer maneira, um dos pontos fortes da campanha eleitoral de Biden foi seu histórico de conseguir chegar a meio-termos como senador e como vice-presidente, sendo capaz de trabalhar com colegas de ambos os partidos e aprovar legislação bipartidária. Obamacare, a maior expansão de saúde universal nos Estados Unidos há décadas, se deve em grande parte à capacidade de diálogo e persuasão que o mesmo manteve enquanto vice-presidente.
Biden e o líder do partido majoritário do senado, Mitch McConnell, até trabalharam juntos como senadores por mais de duas décadas. Em uma entrevista recente com o New York Times, Biden afirmou que “Eu acho que há trocas, que nem todo meio-termo significa se afastar de um princípio. Ele [McConnell] me conhece. Eu conheço ele.”
O novo presidente pode permanecer esperançoso à procura de sinais de boa vontade de seus adversários republicanos durante esses tempos tumultuosos – mas é difícil ignorar o fato de que esta é a primeira vez na história americana em que todo um partido político se recusa a reconhecer um presidente legitimamente eleito, em prol de um discurso enganoso (ilusório, será?) de alguém que não sabe perder.
Esse será o maior desafio que Joe Biden e Kamala Harris enfrentarão até agora, assim como toda a população americana – e o mundo.